2004-10-08

O excesso de poderes do Ministério Público

Uma das coisas mais irritantes no actual Procurador-Geral da República, Souto Moura, é a sua mania de falar por enigmas. Souto Moura, a Esfinge, gosta de falar à Imprensa e de aparecer, mas sempre que o faz, usa uma linguagem tão rebuscada e inacessível que faria empalidecer de espanto o mais hermético dos alquimistas. Talvez porque se não fosse assim, ficaria à vista de toda a gente o indivíduo arrogante, prepotente e vaidoso que ele na realidade é. Foi o que sucedeu aquando da sessão comemorativa (?) dos 25 anos do estatuto do Ministério Público, a propósito das críticas movidas pelo Presidente Jorge Sampaio.

As declarações de Sampaio reavivaram a velha polémica do excesso de poderes do Ministério Público em Portugal: após criticar o corporativismo dos agentes da justiça (todos, sem excepção), que «esquecem, com demasiada frequência, a comunidade de valores essenciais que lhes cabe promover», o Presidente acrescentou que «o último ano veio evidenciar como é frágil a nossa cultura de direitos fundamentais». E que teve Souto Moura a dizer a este respeito? Como é do seu timbre, a Esfinge mostrou-se avessa a tudo o que seja mudança, pois «devemos preservar esta estrutura de que fomos pioneiros». Acrescentou mesmo que as «democracias inteligentes do centro da Europa procuram o nosso modelo», pelo que devemos concluir que as democracias que não seguem o dito modelo, como as anglo-saxónicas, são estúpidas!

Na sua concepção tradicional, o Ministério Público era um mero departamento do poder executivo, hierarquicamente subordinado ao governo; os seus membros não eram por isso considerados como magistrados equiparados aos juízes ou magistrados judiciais, mas sim como agentes administrativos equiparados no essencial aos funcionários públicos; não ocupava um lugar destacado no organograma do sistema judicial; não havia uma carreira privativa dos seus agentes; o seu dirigente máximo, o Procurador-Geral da República, não possuía um estatuto especial ou notoriedade pública, pois era apenas um dos altos funcionários do Ministério da Justiça; enfim, não gozava de autonomia face ao governo e os seus agentes formavam uma hierarquia administrativa dirigida pelo Procurador-Geral, que por sua vez dependia do Ministro da Justiça.

Com a Constituição de 1976, o legislador reagiu contra os excessos de centralização e concentração de poderes praticados pela Ditadura e, com isso, o Ministério Público veio a conquistar um conjunto de novos poderes. A expansão desses poderes foi, porém, desmesurada. No essencial, a Constituição consagrou-lhe um capítulo próprio; equiparou-o à magistratura judicial, atribuindo-lhe estatuto próprio e chamando aos seus agentes «magistrados»; estabeleceu que a nomeação, promoção e colocação destes magistrados, bem como a acção disciplinar sobre eles, deixou de pertencer ao governo e passou a ser da competência da Procuradoria-Geral da República, num claro regime de auto-governo profissional. A legislação ordinária foi ainda mais longe e conferiu-lhe um regime de autonomia em relação aos órgãos de poder central, regional e local; desvinculou-o da obediência hierárquica ao governo; construiu uma carreira de magistrados paralela à magistratura judicial e dela independente; e permitiu-lhe exercer funções próprias do poder judicial, bem como passar a controlar, em substituição do Ministro da Justiça, a Polícia Judiciária.

Estas alterações suscitam um número infindável de problemas, interrogações e perplexidades, sobretudo no campo jurídico-penal – que não é o domínio exclusivo da actuação do Ministério Público, mas é a sua face mais visível. Serão referidos dois pontos em particular: a invasão da esfera das atribuições dos tribunais; e a assunção de poderes de investigação criminal.

Quanto à invasão de atribuições dos tribunais, a inconstitucionalidade é flagrante: porque viola o princípio da separação de poderes; porque origina grandes promiscuidades entre juízes e procuradores, que na prática discutem e decidem entre si os processos, no segredo dos respectivos gabinetes e sem a presença dos advogados («uma mão lava a outra»); porque gera desigualdades tremendas entre acusação e defesa, num processo penal que deveria ser pautado pela igualdade de armas e lealdade. Tão flagrante é essa ingerência, que a lei chega a mesmo a conceder ao Ministério Público a possibilidade de decidir na determinação da medida concreta das penas, que deveria ser o último reduto dos poderes cometidos aos juízes: o Código de Processo Penal atribui-lhe a possibilidade de remeter determinados processos-crimes para julgamento por um tribunal singular, se entender que não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.

Este estado de coisas tem produzido resultados graves ao nível da tutela dos direitos fundamentais, como salientou Sampaio na sua intervenção. A presunção de inocência cai por terra e na prática inverte-se o ónus da prova: uma acusação equivale a uma condenação e, em vez de caber ao Estado a incumbência de provar culpas, passa a ser o arguido quem deve demonstrar a sua inocência. E ai daquele que não consiga comprovar, com assinaturas reconhecidas notarialmente e tudo, todos os passos que deu em todos os dias do ano, pois bastará um procurador sem escrúpulos e um punhado de depoimentos acusadores para encarcerá-lo durante mais de um ano e sem direito a julgamento – lembram-se de Carlos Cruz?

A assunção pelo Ministério Público de poderes de investigação criminal e a colocação da Polícia Judiciária sob o seu controlo e fiscalização têm também gerado inúmeros problemas: ineficiência na perseguição dos criminosos, confusão orgânica, sobreposição funcional e conflitos permanentes. No processo da Casa Pia, a descoordenação foi evidente. Antes da escandalosa detenção de Carlos Cruz, a Procuradoria foi avisada pela Polícia Judiciária da fragilidade das provas acusatórias. Um relatório de Artur Pereira, director da Directoria de Lisboa da PJ, referiu então a exiguidade de provas e ausência de elementos básicos em qualquer investigação, nomeadamente «as localizações das residências onde os abusos terão sido cometidos, as identificações dos seus proprietários ou locatários, a existência de relações interpessoais comprovadas entre os arguidos, a falta de realização […] de buscas domiciliárias e em escritórios dos visados, a recolha e tratamento da facturação dos seus telemóveis e a análise dos próprios telemóveis» (in Jornal de Notícias de 27.06.2004, pág. 8). Não obstante, o procurador João Guerra afastou qualquer intervenção da Judiciária, no que foi apoiado por Souto Moura.

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