2004-06-14

Em defesa do Quarteto!


Hoje, gostaria de me debruçar um pouco mais sobre aquela que é uma das melhores (senão a melhor!) e mais históricas das salas de cinema de Lisboa: o mítico Quarteto, situado ali na Rua Flores do Lima, junto à Avenida dos Estados Unidos da América. Nas palavras certeiras de Baptista-Bastos, «estando numa das zonas nobres da cidade, é um cinema de bairro popular e cívico, democrático e plural».

Qualquer texto sobre o Quarteto, por mais breve que seja, não pode esquecer a referência ao nome daquele que foi o pai, mentor e organizador deste excelente espaço: Pedro Bandeira Freire. Empresário, poeta e autor teatral reconhecido, assumiu a criação do Quarteto como uma verdadeira causa. Estávamos em 1975 e Freire era então um jovem de 36 anos de idade, muitos dos quais dedicados ao cinema, sobretudo como empregado no Cineasso, uma empresa já desaparecida, tal como os cinemas que então explorava (Monumental, Satélite, Império, Estúdio, Alvalade, Éden, S. Luiz). Obstinado, Freire leva avante o seu projecto, contrariando todos os augúrios, em particular que o público português não estava preparado para essa inovação, que seria uma alteração radical de um quotidiano burguês em que ir ao cinema era um acontecimento e não um hábito, que não havia cinéfilos em número suficiente para quatro salas onde seriam exibidos filmes de qualidade como era seu requisito, que mesmo a maioria dos filmes ditos de qualidade não eram permitidos no nosso País em face da castradora política cultural da ditadura.

Para os jovens portugueses da altura, muito limitados politicamente na possibilidade de viagens ao estrangeiro, privados de contacto directo com o mundo, o cinema era a grande fonte de conhecimento. Nas vésperas da sua criação, o Quarteto não seria propriamente um oásis, já que se podia mitigar a fome de filmes noutras salas, mas a verdade é que, apesar dos esforços agonizantes dos cine clubes e da programação da Cinemateca, o panorama cinéfilo era desolador. Com o 25 de Abril franquearam-se as portas à disseminação das pequenas salas. O primeiro enorme impulso, que constituiu uma novidade falada em toda a Cidade, foi dado pelo Quarteto. A liberdade, para quem gosta de cinema neste país, também chegou com o Quarteto. Nas palavras de Bandeira Freire, «escolhemos a liberdade e os seus sacrifícios, mas também a liberdade e os seus direitos».

Também o Quarteto, em plena ressaca abrilista, encetou a sua própria revolução. Das salas monovolumes ou quando muito aglomerando uma sala grande com um pequeno estúdio ou satélite, iniciava-se a passagem a um sistema multisalas, num tempo em que tal conceito estava longe de ser considerado o futuro nos meios de distribuição e exibição, mas que viria ao longo dos anos a dominar progressivamente o mercado.

O mais importante do Quarteto foi, todavia, a revelação de uma nova forma de programar, assente no amor pelas obras exibidas. A 21 de Novembro de 1975, abriu finalmente as suas portas. «Foi um espanto!», diz quem lá esteve. No mesmo prédio, quatro salas, quatro filmes em simultâneo: o primeiro multiplex de Portugal! Para os cinéfilos, foi o deslumbramento. Os filmes de estreia eram um luxo: S. Miguel tinha um Galo, dos Irmãos Tassani; Um Filme Doce, de Makavejev; Amor em Tons Eróticos, de Mai Zetterling; e E deram-lhe uma Espingarda… de Dalton Trumbo. Assim nasceu o Quarteto, com bilhetes a 30$00.

O Quarteto foi o espaço de estreia de largas dezenas de filmes portugueses, muitos dos quais não teriam de outra forma conhecido o olhar do público. Acolheu iniciativas como extensões das Quinzenas dos Realizadores ou das Perspectivas do Cinema Francês, ambas saídas do Festival de Cannes. Promoveu mostras de filmes soviéticos, várias maratonas que assinalaram o início de actividades de revistas como Isto é Espectáculo!, Isto é Cinema!, ou ainda aniversários do próprio complexo. Foi o Quarteto que estreou em Portugal o primeiro filme chinês, O Milho vermelho, o primeiro filme africano Yellen de S. Cissé ou que lançou a ideia de reestrear grandes clássicos com cópia nova, como Lola Montès. Ciclos de cinema de grandes realizadores e de grandes temas constituíram acontecimentos culturais de enorme importância e actualidade. Cine clubes, revistas, grupos de jovens, todos puderam contar com o Quarteto para dar amplitude e visibilidade às suas iniciativas. Chegou mesmo a ter a sua revista própria, A Memória do Cinema. Particularmente admirável foi a cumplicidade com a Cinemateca: a 23 de Abril de 1981, cerca de seis meses após a inauguração, a sua sala na Barata Salgueiro ardeu e durante dezoito longos meses a nossa Cinemateca viu-se na incómoda condição de desalojada. Para onde mudá-la? A possibilidade era só uma: o Quarteto. Pedro Bandeira Freire não hesitou na resposta, disse logo que sim e cedeu uma das suas salas.

O Quarteto é uma das conquistas de Abril que perduram. É, na verdade, um sobrevivente que resistiu e resiste a tudo: à dramática baixa de espectadores dos finais dos anos 80 até meados dos anos 90, à concorrência do vídeo, à abertura quase simultânea dos canais de TV privada, à instalação em catadupa dos novos multiplexes. Adversidades que o espaço suplantou, apoiado numa clientela fiel e numa qualidade cinematográfica singular. Os seus fundadores tinham a noção clara de que estavam a investir no futuro, bem ao contrário das outras salas de então – as tais grandes salas – que, ano após ano, iam fechando as suas portas, enquanto que o Quarteto se fortalecia com um programação que fundia a qualidade com os clássicos, não esquecendo os grandes filmes do momento. Os objectivos eram claros: passar filmes por gosto. A táctica era simples: jogar com as diferentes distribuidoras que à época existiam.

Hoje, a conjuntura da distribuição / exibição alterou-se radicalmente. Das cerca de trinta distribuidoras que existiam em 1975, actualmente não restam mais de meia dúzia que na generalidade têm os seus próprios circuitos de cinema, cumprindo maquinalmente os comandos das grandes produtoras e impedindo desse modo todas e quaisquer possibilidades de escolha criteriosa. Aos muitos espaços de exibição, sobrepõe-se uma oferta reduzida e o cinzentismo, numa lógica de pura escravatura às leis de um mercado em que a venda de pipocas e não o filme em si é o negócio principal. É a globalização a estender a sua sombra também à indústria cinematográfica!

Por tudo isto, hoje mais do que nunca precisamos de um Quarteto forte e popular. É verdade que o espaço actual está algo ultrapassado na dimensão e no número de salas por outros grupos de grande poder à escala nacional e internacional. A variedade da programação, que continua a satisfazer as diferentes correntes de opinião, não deixou de se ressentir. Mesmo assim, a presença de Pedro Bandeira Freire continua visível no estilo, na memória, no bom acolhimento dos espectadores. As suas salas não são pequenas, são aconchegantes. Os intervalos são oportunidades privilegiadas para beijos, apertos de mão e comentários apaixonados dos filmes visionados: frente às quatro salas, um espaço acolhedor para a troca de impressões, acompanhado no simpático bar de um copo e uma fatia de delicioso pão-de-ló de Alfeizerão. Resta-nos esperar que quatro salas, quatro filmes continue a ser por muito tempo o slogan de um espaço que ao longo dos anos tem ajudado a formar gerações de cinéfilos – ou cine-filhos – na cultura e no bom gosto. Viva o Quarteto!